Quando falamos de trespasse estamos nos referindo a um contrato oneroso de transferência do estabelecimento empresarial. Porém, antes de adentrarmos nas suas particularidades é importante entender de fato o que seria um estabelecimento empresarial, visto que há uma classificação equivocada na prática.
O estabelecimento empresarial (ou fundo de empresa como alguns costumam utilizar) não representa simplesmente o local em que o empresário exerce suas atividades, pelo contrário o sentido é um pouco mais complexo, já que envolvem bens de variadas espécies (materiais ou imateriais) que o empresário utiliza nas suas atividades.
Em relação aos bens materiais podemos entender os bens corpóreos como a mobília, os utensílios da atividade como maquinários, os automóveis, os equipamentos técnicos etc. Enquanto os bens imateriais seriam os bens incorpóreos e direitos autorais como a patente, o nome empresarial, a marca registrada, o desenho industrial, o ponto etc.
Na legislação o Código Civil tratou do estabelecimento empresarial e do contrato de trespasse através dos artigos 1.142 a 1.149.
O Código Civil considera o estabelecimento como todo complexo de bens organizados, para exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária.
Dessa forma fica evidente que o local onde o empresário exerce as suas atividades, conhecido comumente como ponto comercial, é apenas um dos elementos que integra o estabelecimento e não a sua conceituação plena.
Além disso, é importante frisar que o estabelecimento não se confunde com a empresa e nem com a figura do empresário, porquanto a primeira corresponde a uma atividade e o segundo a uma pessoa física ou jurídica que explora essa atividade empresarial.
Para avançarmos até o contrato de trespasse ainda é necessário fazer mais uma diferenciação, desta vez a respeito do patrimônio do empresário em relação ao estabelecimento empresarial.
Assim, nem todo patrimônio pertencente ao empresário será, necessariamente, componente do estabelecimento empresarial. Só compõe o estabelecimento empresarial aqueles bens que tenham uma ligação com a atividade empresária, do contrário estaremos diante de um patrimônio exclusivo do empresário.
Diante disso, todo aquele bem que não afete a atividade empresária, em que a sociedade possa exercer suas atividades sem ser prejudicada não compõe o estabelecimento empresarial, bem como os contratos, os créditos e as dívidas que são consideradas como direitos e obrigações do empresário.
Por mais que essa diferenciação pareça simples, na prática é um pouco mais complexo ainda mais se estivermos diante de uma grande sociedade empresária, isso porque de primeira mão podemos achar que todos os bens possuem uma ligação com a atividade-fim da empresa. Logo, é muito importante que essa análise de patrimônio afetado seja feita de forma detalhada e com muita atenção.
Mas então, quando de fato ocorre o trespasse?
O trespasse é um contrato por escrito de alienação do estabelecimento empresarial de forma unitária, como um todo.
De acordo com o art. 1.144 do Código Civil o contrato de trespasse pode ter como objeto a alienação, o usufruto ou o arrendamento do estabelecimento empresarial, mas que depende de determinadas formalidades para surtir eficácia quanto a terceiros.
Em relação aos terceiros o trespasse só produz eficácia após o contrato ser averbado (registrado) na Junta Comercial com posterior publicação na imprensa oficial, além disso, é necessário que o empresário deixe bens suficientes para pagar suas dívidas ou que notifique expressamente seus credores dessa alienação.
A notificação dos credores deverá ser realizada de forma expressa com um prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento. Os credores podem se manifestar a respeito dessa alienação que só surtirá efeitos com o consentimento deles.
Não havendo qualquer resposta após o prazo de 30 (trinta) dias entende-se que o consentimento foi fornecido de forma tácita, surtindo o contrato de trespasse os seus efeitos desejados.
Esta notificação só é necessária quando o alienante não deixa bens suficientes para saldar suas dívidas ou não realiza o pagamento de forma antecipada, assim como mecanismo de boa-fé é importante que ele notifique seus credores para que eles não sejam prejudicados com essa alienação, uma vez que o estabelecimento empresarial compõe o patrimônio do empresário – o titular dos direitos e das obrigações, como as dívidas.
A alienação do estabelecimento empresarial sem a observância dessas formalidades além de não ser eficaz em relação aos terceiros, também pode acarretar na decretação da falência do empresário ou da sociedade empresária.
O art. 94, III, c, da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/05) elenca a transferência irregular do estabelecimento como hipótese de falência, vejamos:
Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;
II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;
III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:
a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos;
b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;
c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;
[grifo nosso].
Desta forma, o não consentimento dos credores ou o não pagamento das dívidas ao se elaborar um contrato de trespasse pode ocasionar a decretação da falência e suceder a quebra do empreendimento de uma única vez.
Outro ponto relevante trazido no Código Civil em seu art. 1.147 é que não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento fica proibido de fazer concorrência ao adquirente, nos 05 (cinco) anos após a transferência ou durante o prazo do contrato nos casos de arrendamento ou usufruto.
Este artigo demonstra o seguinte: se o alienante estiver com a intenção de continuar exercendo a mesma atividade empresarial, deverá deixar isso expresso no contrato através de uma cláusula de autorização. Com a cláusula de autorização não há qualquer impedimento em relação à concorrência, mas do contrário prevalece à disposição da própria lei.
Devemos ressaltar que não havendo cláusula de autorização ou havendo cláusula proibitiva de concorrência e mesmo assim o alienante insistir em praticar o contrário poderá ser condenado em razão de crime de concorrência desleal, conforme dispõe o art. 195 da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96).
Para saber quando é relevante inserir uma cláusula ou outra no contrato de trespasse é importante analisar de qual lado estamos falando. Em relação ao alienante para ele é mais vantajoso à inclusão de uma cláusula de autorização de concorrência que permita a ele explorar o mesmo ramo de atividade, sem limites geográficos e sem prazo de validade.
Porém, se estamos analisando o lado do adquirente é muito mais estratégico que se inclua no contrato uma cláusula de proibição de concorrência, para que ele tenha a total garantia de que está adquirindo o estabelecimento comercial junto à clientela já consolidada, com a garantia de tempo e de espaço geográfico de que o alienante não pode concorrer naquele espaço com ele, sob pena de responder por crime de concorrência desleal.
Por fim, é importante frisar que a cláusula proibitiva no contrato de trespasse não pode ser escrita de forma genérica a ponto de inviabilizar a livre iniciativa e o empreendedorismo, para isso o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) fiscaliza e condiciona essas restrições para que elas sejam válidas, mas não indiscriminadas.
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Taís Castro - Advogada e Consultora em Proteção de Dados.
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